No jornal
Eu vou pra longe
Onde não exista gravidade
Pra me livrar do peso da responsabilidade
De viver nesse planeta doente
E ter que achar a cura da cabeça
E do coração da gente
Chega de loucura, chega de tortura
Talvez aí no espaço eu ache alguma criatura inteligente
Aqui tem muita gente, mas eu só encontro solidão
Ódio, mentira, ambição
Estrela por aí é o que não falta, Astronauta!
A Terra é um planeta em extinção...
[Trecho de Austronauta - Gabriel o Pensador]
Palavras Cruzadas
Anita
O despertador nem tocou e eu já estava acordada às 7h da
madrugada. Que droga é essa? Tô ficando velha, não consigo mais acordar tarde.
Paciência, agora já levantei. Primeiro as pernas, depois os olhos, que é pra
não sair batendo a cara nas paredes. Pé direito no chão, banheiro, torneira e -
opa! -, espelho. Taí uma coisa que não devia existir logo de manhã: deprime.
Bom-dia pra Niuza, café-com-leite e torrada. Nada pra fazer. Vou pro sofá e
continuo lendo o Presença de Anita. Livro engraçado, não consigo deixar de
imaginar as caras do José Mayer e da Mel Lisboa nos personagens principais. A
Anita da história é loira, mas eu quero a minha morena e de olhos verdes,
pronto. Já sei mais ou menos o final, nem ligo. Lá estão Mel Lisboa e José
Mayer falando de sexo e de amor, vivendo toda aquela confusão de sentimentos.
Amor é um negócio tão esquisito, a gente chora e ri quando ama. Junta uma coisa ruim com uma boa e forma isso aí. Nunca vi. Deve
ser normal, o amor. Fico pensando se não seria melhor que ele fosse alguma
coisa no meio, nem rir nem chorar. Mas aí não seria tão bom. Eu acho. Amar,
amar, amar. Quatro letras, todo mundo lê mais do que isso. Amor é um troço
folgado, chega sem pedir licença nem avisar. Mas a gente sempre deixa ele
entrar, fazer o-quê. Eu já amei. Dois ou três, não sei, não medi. Quantos metros você ama?, eu perguntaria. 1,80m pra
cima, sou pequenininha. Pela estrada, seis mil cento e vinte e
dois metros. Pode medir em centímetros também: quanto mais perto, mais amor.
Mas nem é. Alma gêmea nem deve existir, seis bilhões
de pessoas. Se a minha for um japonês eu tô fodida, vários milhares de
quilômetros. E se for um homem casado com a cara do José Mayer, então, pior
ainda. Quem sabe? "Só os amantes sabem que
possuir é apenas uma palavra", ele diz. E
desce as escadas pra nunca mais voltar.
"Os três mal-amados"
O amor comeu meu nome, minha identidade,
meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O
amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera
meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços,
minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus
ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura,
meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas
receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus
raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus
livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no
dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de
meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor
devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o
aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a
mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido.
Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde
irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos
sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino
esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que
tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade.
Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas
duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados
pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de
cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não
saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não
anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as
linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande
poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra.
Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de
cabeça, meu medo da morte.
[João Cabral de Melo Neto e um dos meus textos preferidos da literatura brasileira]